"Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade."
Fernando Pessoa.
Ao reler o texto do Prof. Franklin Leopoldo e Silva, do livro Descartes: A Metafísica da Modernidade, sobre a Unidade da Ciência e a Unidade do Método em Descartes, me deparei com o seguinte trecho:
“Por que Descartes vê como incompatíveis com a verdade a variação e a pluralidade na construção do saber?
Em primeiro lugar porque, como já vimos, a própria diversidade de opiniões acumuladas ao longo da história de saber se mostra incompatível com o caráter único que deve possuir a verdade.
Em segundo lugar, a relatividade que as condições e os costumes imprimem na maneira de pensar tornam o conhecimento dependente dessas conjunturas, caso não estabeleçamos o modo de tornar a busca da verdade na ciência independente de tais condições.” (SILVA, p. 29)
Gueroult, ao citar Descartes, expõe ainda que:
“Todas as vezes em que dois homens tem sobre a mesma coisa um juízo contrário, é certo que um deles se engana. Mas ainda, nenhum dos dois detém a verdade, pois, se tivessem dela uma visão clara e nítida, poderiam expô-la a seu adversário de tal sorte que ela acabaria por forçar sua convicção.” (DESCARTES [apud] GUEROULT, p.5)
Essas passagens me levaram a pesquisar sobre o modo como a antropologia enxerga a diversidade na construção do saber e da ciência e me deparei com o antropólogo Bruno Latour. O seguinte trecho de uma análise intitulada: “Uma ‘tempestade’ chamada Latour: a Antropologia da Ciência em Perspectiva”, de Sérgio Carrara, ilustra como as recentes discussões em torno do “fazer ciência” mostram as diversidades e complexidades que, em muito, se distanciam da proposta de um caráter único defendida por Descartes:
“Latour parte do princípio de que "nossa vida intelectual está muito mal feita" (Latour, 1991, p. 13). Uma série de separações violentamente arbitrárias estaria nos impedindo de aceder a uma compreensão mais acurada do mundo à nossa volta. Para ele, a mais superficial leitura de um jornal diário é suficiente para revelar que estamos cercados por entes que já não conseguimos mais classificar facilmente. Tomemos as notícias sobre AIDS, diria Latour, e nos preparemos para enfrentar nada menos que os macacos verdes, os sofisticados laboratórios franceses e americanos, a decadência do mundo ocidental, os haitianos pobres, os virologistas, os governos do Primeiro e Terceiro Mundo, as lúgubres florestas africanas, os ricos homossexuais nova-iorquinos, os deuses em cólera, as diferentes culturas sexuais, a imprensa, o Papa, a ONU, os doentes organizados, a indústria farmacêutica, os militantes gays e antigays, certos vírus infinitamente pequenos e traiçoeiros, os antropólogos, os cientistas sociais e - por que não? - o futuro da espécie humana.
No entanto, segundo Latour, ao analisar como a AIDS (ou qualquer um dos outros que listamos como estando a ela relacionados), tendemos ou a considerá-los fatos naturais e objetivos, como fazem em geral médicos, biólogos, virologistas etc., ou a vê-los (geralmente contra aqueles) como fatos sociais, culturais ou discursivos, dependendo da nossa filiação teórica. Ou são coisa, ou são representação; objeto ou sujeito; fato ou símbolo; matéria ou idéia. Só não podem ser as duas coisas ao mesmo tempo. E, no entanto, para Latour, elas o são “de fato”, mesmo que não “de direito”. São, como diz, ao mesmo tempo “reais como a natureza, narradas como o discurso e coletivas como a sociedade” (Latour, 1991, p. 15). E é nesse “direito”, nessa espécie de constituição que nega “cidadania” a tais híbridos, a tais “quase-coisas” ou “quase-sujeitos”, que Latour vai localizar as dificuldades que temos em abordá-los.”
Esses trechos selecionados de Descartes e Latour exemplificam as diferentes visões desses autores sobre a construção da ciência. Enquanto o primeiro baseou sua filosofia em afirmar uma ciência única, dedicando boa parte de suas obras em desenvolver e aplicar um método para a constituição desse saber, Latour, ao contrário, deixa claro pelo exemplo da AIDS, a complexa teia envolvida na abordagem da ciência.
Bibliografia
[1] SILVA, F.L. 2005. Descartes: a Metafísica da Modernidade. São Paulo: Moderna, 2. ed.
[2] GUEROULT, M. 1953. Descartes selon l'ordre des raisons. by Aubier Montaigne. Tradução para o português de Enéias Forlin (Descartes Segundo a ordem das razões). s/d.
[3] CARRARA, S. 2002. “Uma ‘tempestade’ chamada Latour: a Antropologia da Ciência em Perspectiva”. in:PHISIS: Rev. Saúde Coletiva: Rio de Janeiro. 12 (I): pp. 179-203 (disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v12n1/a12.pdf).